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Uma Guitarra Mágica

O CEC abre hoje uma nova rubri­ca nas suas crí­ti­cas cine­ma­to­grá­fi­ca. Com o intui­to de rea­tar os laços dos actu­ais com os anti­gos sóci­os acti­vos, vamos sema­nal­men­te publi­car as crí­ti­cas publi­ca­das ao lon­go dos mais de 65 anos de acti­vi­da­de inin­ter­rup­ta. A abrir esta rubri­ca publi­ca­mos a crí­ti­ca do sócio Bru­no Dias, do fil­me “Uma Gui­tar­ra Mági­ca” de Woddy Allen, inse­ri­do no núme­ro 27 da Revis­ta Apo­ka­lip­se (2001).

Uma Guitarra Mágica, 1999

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Há fil­mes que pare­cem ter sido fei­tos para nos mos­trar uma sequên­cia, um pla­no, um ros­to. “Swe­et and Low­down”, o últi­mo fil­me de Woody Allen estre­a­do em Por­tu­gal é um des­ses fil­mes. Todo o fil­me, todas as acções vão desa­guar na sequên­cia em que Emmet (Sean Penn) par­te a sua gui­tar­ra con­tra uma arvo­re. Um acto de deses­pe­ro de alguém que aca­ba de tomar cons­ci­ên­cia que na vida cer­tos momen­tos não se repetem.

Antes de ana­li­sar essa sequên­cia, come­ço no entan­to pelo prin­ci­pio. O fil­me ini­cia-se com os depoi­men­tos de vári­as pes­so­as, entre elas o pró­prio Woody Allen, acer­ca de um dos gui­tar­ris­ta mais pro­di­gi­o­sos que a Amé­ri­ca conhe­ceu. O pro­ble­ma está no fac­to de a mai­or par­te do que se sabe dele serem ape­nas his­tó­ri­as não con­fir­ma­das, espe­ci­al­men­te nos anos ini­ci­ais. Esses pri­mei­ros depoi­men­tos aca­bam com a refe­rên­cia à pri­mei­ra his­tó­ria que se conhe­ce sobre Emmet. Nes­sa his­tó­ria ficam logo evi­den­tes o seu talen­to e os prin­ci­pais tra­ços de per­so­na­li­da­de: irres­pon­sá­vel e ego­cên­tri­co. O fil­me cobre o perío­do que vai des­de esse epi­só­dio até ao seu apo­geu artís­ti­co, pois nada se sabe sobre ele posteriormente.

Emmet inti­tu­la-se como o segun­do melhor gui­tar­ris­ta do mun­do depois do ciga­no fran­cês Djan­go. Ao lon­go de toda a sua vida ele vai ali­men­tar uma vene­ra­ção por esse homem ao pon­to de des­mai­ar sem­pre que o vê. O que se conhe­ce sobre ele baseia-se nas rela­ções que man­te­ve com duas mulhe­res: Hat­tie (Samantha Mor­ton) e Blan­che (Uma Thur­man). Duas mulhe­res não pode­ri­am ser mais dife­ren­tes. O que uma tem de humil­da­de, a outra tem de extra­va­gân­cia. Se a últi­ma tudo ques­ti­o­na a pri­mei­ra nada diz… até por­que é muda. Emmet conhe­ce Hat­tie num dia onde ele e um dos ele­men­tos da sua ban­da se dedi­cam a arran­jar uma namo­ra­da. Quan­do eles veem  Hat­tie e a sua ami­ga não se enten­dem em quem fica com quem. Como resol­ver esse pro­ble­ma? Fácil. Ati­ra-se uma moe­da ao ar e está resol­vi­do! Quan­do Emmet des­co­bre que Hat­tie é muda fica incré­du­lo. Mal sabe ele a impor­tân­cia que ela irá ter na sua per­so­na­li­da­de, vida e na sua arte.

A rela­ção que se esta­be­le­ce entre Emmet e Hat­tie é base­a­da no domí­nio dele e na pas­si­vi­da­de dela. Emmet des­co­bre o car­ro dos seus sonhos mas o seu empre­sá­rio considera‑o dema­si­a­do caro. Res­pos­ta de Emmet: Hat­tie pode dei­xar de comer sobre­me­sa. Pou­co depois de se conhe­ce­rem Hat­tie e Emmet tem sexo. A ânsia dela é tan­ta que facil­men­te se adi­vi­nha que aque­la está a ser a sua pri­mei­ra vez. Isto aju­da-nos a per­ce­ber o modo como ela se entre­ga a Emmet. A sua pai­xão e ino­cên­cia  é mag­ni­fi­ca­men­te expres­sa no ar de satis­fa­ção com que ela tro­ca um pneu. Isto enquan­to o namo­ra­do des­can­sa na rel­va e sar­cas­ti­ca­men­te lhe lem­bra ter dito que a via­gem não iria ser um pas­seio. A rela­ção idí­li­ca deles aca­ba abrup­ta­men­te com a fuga dele a meio da noite.


Blan­che é a mulher que se segue. A dife­ren­ça entre esta e a ante­ri­or come­ça logo por ser ela quem vai ter com ele. Ela é uma escri­to­ra que per­se­gue uma boa his­tó­ria. Emmet con­ta-lhe que a sua ante­ri­or namo­ra­da não era sufi­ci­en­te para ele. Pou­co tem­po depois Emmet deci­de repen­ti­na­men­te casar com ela. Esta nova rela­ção é tem­pes­ti­va. Blan­che tem uma per­so­na­li­da­de mui­to for­te e idei­as pre­ci­sas acer­ca do que quer. Blan­che inte­res­sa-se por tudo aqui­lo que sai da nor­ma­li­da­de. É por isso que ela se sen­te curi­o­sa pela geni­a­li­da­de de Emmet. Porem quan­do ela conhe­ce Al Tor­rio (Anthony LaPa­glia), um homem liga­do  à máfia que lhe fala da mor­te e do assas­si­na­to como algo de natu­ral. Blan­che fica ime­di­a­ta­men­te inte­res­sa­da nele. Ao notar isso ele avan­ça. Blan­che come­ça assim uma rela­ção dupla. Um ami­go de Emmet avisa‑o des­se caso, ele recu­sa acei­tar esse fac­to pois não quer por em cau­sa a sua mas­cu­li­ni­da­de. Só que a duvi­da fica e ele come­ça a per­se­guir a sua mulher. Quan­do a mulher vai ao cine­ma, ele segue‑a. No cine­ma ela encon­tra-se com o aman­te. Enquan­to estes  estão a ver o fil­me, ele entra no car­ro e vai para o ban­co tra­sei­ro. Depois do fil­me os aman­tes vão dar uma vol­ta. Duran­te esse pas­seio Emmet tem tem­po de ouvir a mulher dizer que ele não é o melhor aman­te pois está sem­pre a pen­sar na músi­ca. Quan­do eles param numa bom­ba de gaso­li­na ini­cia-se um dos melho­res momen­to do fil­me. Acer­ca des­se epi­só­dio da vida de Emmet exis­tem vári­as ver­sões. Woody Allen fil­ma cada uma delas. O que é fas­ci­nan­te é que em cada uma delas exis­tem sem­pre os mes­mos acon­te­ci­men­tos, mas com uma ordem dife­ren­te. É assim que temos tiros, aci­den­tes de car­ro… e como se cons­tro­em os boa­tos a par­tir de algu­ma ver­da­de. Brilhante!

Depois des­se inci­den­te Emmet aban­do­na a sua mulher. Na sua soli­dão deci­de vol­tar a ver Hat­tie. Come­ça por lhe dizer que não se impor­ta­va que ela vies­se com ele numa digres­são a New York. Só que ela escre­ve-lhe num papel algo que lhe des­trói os sonhos. Ela tem filhos.

Emmet des­pe­de-se dela e con­ti­nua a sua vida. Ou seja con­ti­nua a tocar gui­tar­ra, ter namo­ra­das  a quem fazia ques­tão de levar a ver com­boi­os e dis­pa­rar con­tra rata­za­nas numa lixeira.

É exac­ta­men­te com uma des­sas mulhe­res que ele está a ver um com­boio pas­sar. Ela não per­ce­be a pia­da daqui­lo e está sem­pre a pedir para se ir embo­ra. Isso desen­ca­deia nele uma reac­ção de rejei­ção. Ele manda‑a embo­ra e é então que ele vai par­tir a sua gui­tar­ra na árvore.

Por­que? É nes­sa altu­ra que Emmet rea­li­za que dei­xou ir embo­ra a mulher da sua vida. Aque­la que o com­pre­en­dia. Per­deu tudo isso devi­do ao seu nar­ci­sis­mo. Emmet come­ça a cho­rar agar­ra­do a essa árvo­re. Já não há nada a fazer. A não ser dedi­car-se à sua pai­xão: a guitarra.

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Woody Allen comen­ta que o melhor da sua obra é fei­to nes­sa altu­ra e feliz­men­te foi gra­va­do. Foi ao ouvir essas gra­va­ções que ele se tor­nou fã incon­di­ci­o­nal de Emmet. É com elas que final­men­te Emmet atin­ge o nível de Djan­go. Blan­che dizia-lhe sem­pre que se ele dei­xas­se os seus sen­ti­men­tos ins­pi­ra­rem a sua músi­ca ela seria ain­da melhor. Ele no entan­to evi­ta­va fazê-lo. Emmet con­si­de­ra­va que só a sua músi­ca era impor­tan­te, tudo o res­to era infe­ri­or tal como ele dizia às mulhe­res, inclu­si­ve estas. É Hat­tie que vem alte­rar a sua posi­ção. É ela que vai abrir o seu cora­ção. É ela a res­pon­sá­vel pela matu­ri­da­de que Emmet adqui­re e lhe per­mi­te rea­li­zar o melhor da sua obra.