Branca de Neve

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O CEC apre­sen­ta esta sema­na um tex­to do sócio Jor­ge Vaz Nan­de. A crí­ti­ca cine­ma­to­grá­fi­ca ao fil­me Bran­ca de Neve de João César Mon­tei­ro este­ve pre­sen­te no núme­ro 28 da Revis­ta Apo­ka­lip­se. (2001)

Branca de Neve, 2000

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É cos­tu­me dizer-se que Por­tu­gal é um país de bran­dos cos­tu­mes. Não é usu­al, de fac­to, dis­cu­ti­rem-se obras artís­ti­cas na pra­ça públi­ca, venham elas de que domí­nio vie­rem. A idi­os­sin­cra­sia naci­o­nal, dema­si­a­do com­pro­me­ti­da con­si­go pró­pria, é mais pro­du­to­ra do que apre­ci­a­do­ra, ou, pelo menos, sem­pre a isso aspirou.

Não era pre­vi­sí­vel que um fil­me vies­se desen­ca­de­ar uma con­tro­vér­sia como a que Bran­ca de Neve cau­sou. Pela pri­mei­ra vez, o des­con­ten­ta­men­to dos espec­ta­do­res em rela­ção ao cine­ma por­tu­guês, estig­ma­ti­za­do pelos seus pla­nos lon­gos e par­ci­mo­ni­o­sos, ine­vi­ta­vel­men­te des­con­for­mes com o rit­mo uti­li­tá­rio da actu­a­li­da­de soci­al, pro­jec­ta­va-se numa voz acti­va, para lá do len­çol de aca­nha­men­to por trás do qual se tem res­guar­da­do para evi­tar um con­fron­to que obri­ga­ria a uma mai­or ela­bo­ra­ção argu­men­ta­ti­va e a um ques­ti­o­na­men­to estético.

Ain­da assim, é pena que esta crí­ti­ca, a da vox popu­li, ou se tenha res­trin­gi­do essen­ci­al­men­te a uma só dimen­são des­te pecu­li­ar fil­me ou a tenha con­fun­di­do com outras, obs­cu­re­cen­do o seu sentido.

Por­que Bran­ca de Neve é um objec­to insó­li­to por três ângu­los dife­ren­tes, e não só pela sua face­ta finan­cei­ra. É com­pre­en­sí­vel que, à saí­da do cine­ma, uma cons­ci­ên­cia revol­ta­da se tenha que­ri­do vin­gar de uma obra que não enten­deu e pre­fe­ri­do, em vez de pros­se­guir um juí­zo esté­ti­co sobre um objec­to esté­ti­co, res­mun­gar as mágo­as do dinhei­ro gas­to e diri­gi-las, num súbi­to gol­pe de génio, para o dinhei­ro dos impos­tos que pagou e que sub­si­di­ou algo que lhe é estra­nho – um fil­me que não per­ce­be por­que desis­tiu de perceber.

Godard já dis­se que, hoje em dia, o públi­co vai ao cine­ma, não pelo cine­ma em si, mas pela pro­mes­sa de entre­te­ni­men­to que o fil­me ofe­re­ce; é pro­vá­vel que a afir­ma­ção seja exa­ge­ra­da e tal­vez nun­ca essa cons­ci­ên­cia tenha sido dife­ren­te, mas che­ga­ria a ante­ri­or pro­du­ção medi­a­na aos níveis de medi­o­cri­da­de de hoje em dia, desam­pa­ra­da como anda à gra­tui­ti­da­de visu­al dos efei­tos espe­ci­ais e do ero­tis­mo pou­co ins­pi­ra­do? Todo este estri­bi­lho suce­de, pre­ci­sa­men­te, por a pos­si­bi­li­da­de daque­la pro­mes­sa ser tão radi­cal­men­te cor­ta­da pela raiz. O pris­ma do dinhei­ro, no entan­to, não é o melhor para se obser­var a arte.

Por isso exis­tem os fun­dos públi­cos, para per­mi­tir que obras que, à par­ti­da, não garan­tam uma gran­de afluên­cia às salas e que, logo, encon­tra­rão difi­cul­da­des em obter finan­ci­a­men­to no cir­cui­to comer­ci­al, sejam pro­du­zi­das, pros­se­guin­do assim a van­guar­da artística.

O espec­ta­dor de cine­ma deve pas­sar a com­pre­en­der que é ele o sujei­to acti­vo na rela­ção com o fil­me – é ele que vai visi­tar o fil­me na sua mora­dia, e não o con­trá­rio — e que a recla­ma­da sepa­ra­ção entre a cul­tu­ra e a popu­la­ção depen­de só dele. Para isto, não é a melhor estra­té­gia dei­xar que uma dis­cus­são sobre a dis­tri­bui­ção de fun­dos públi­cos, por mui­to acu­ti­lan­te e neces­sá­ria que seja, se intro­me­ta e mono­po­li­ze uma outra, a estética.

▶ João César Monteiro, Branca de Neve  2000  - Filme Completo - YouTube (2)

E é este­ti­ca­men­te que se deve con­si­de­rar o fil­me, tan­to em si mes­mo como objec­to na cul­tu­ra. Des­ta últi­ma pers­pec­ti­va, não é ele o pri­mei­ro a escon­der as for­mas ao espec­ta­dor, mas é pru­den­te dis­tin­gui-lo des­de já de uma outra expe­ri­ên­cia-limi­te, o Blue, de Derek Jar­man, repo­si­tó­rio das gra­va­ções que este autor ajun­tou duran­te a fase ter­mi­nal da doen­ça que o have­ria de levar ao túmu­lo pou­co tem­po depois.

Da mis­tu­ra da luci­dez arre­pi­an­te des­ses rela­tos de deca­dên­cia físi­ca e huma­na, mui­tos deles gra­va­dos direc­ta­men­te nos hos­pi­tais em que Jar­man per­noi­tou, com os poe­mas e músi­cas que pare­cem agi­tar um leque de escár­nio trá­gi­co em fren­te à Mor­te, o azul celes­ti­al omni­pre­sen­te na tela colo­ra-se e agi­ta-se, ganha uma sig­ni­fi­ca­ção pró­pria: de últi­ma cor que um cine­as­ta que cegou con­se­guiu ver – e, assim per­ce­bi­do, sím­bo­lo do fim de uma vida, repre­sen­ta­ção máxi­ma do deses­pe­ro -, ele trans­for­ma-se em con­den­sa­ção da rea­li­da­de exte­ri­or e do espí­ri­to, úni­ca expres­são váli­da de uma encru­zi­lha­da em que a ima­gem, por­que tra­du­ção do extra-sub­jec­ti­vo, per­deu o sentido.

Aqui resi­de a pro­fun­da diver­gên­cia entre Blue e Bran­ca de Neve: é que João César Mon­tei­ro (JCM) nega a ima­gem, blo­queia a visão que a pro­cu­ra, enquan­to que Jar­man optou por supe­rá-la por um modo expres­si­vo mai­or. Nada de sur­pre­en­den­te, por­tan­to; é tão incom­pa­tí­vel o refi­na­men­to de desen­can­to do pri­mei­ro com a inten­si­da­de emo­ci­o­nal de Blue como o é o arre­ba­tar ébrio do segun­do com a pun­gen­te e cal­cu­lis­ta vaga­ro­si­da­de de Bran­ca de Neve.

▶ João César Monteiro, Branca de Neve  2000  - Filme Completo - YouTube (1)

No entan­to, e seja a sua moti­va­ção quer a recu­sa quer a subli­ma­ção da lin­gua­gem cine­ma­to­grá­fi­ca, é ine­vi­tá­vel per­gun­tar­mo-nos sobre se a ausên­cia de ima­gens em movi­men­to (evi­tar a ques­tão com base nos bre­ves inserts de céu azul em Bran­ca de Neve seria hipó­cri­ta) não leva a dis­pen­sar estas obras do qua­li­fi­ca­ti­vo de «cine­ma».

É ver­da­de que ambas evi­tam os modos expres­si­vos típi­cos des­sa arte, mas deve­mos fazer algu­mas obser­va­ções: pri­mei­ro, o cine­ma sem­pre se con­ce­beu como cadi­nho artís­ti­co, reu­nin­do ele­men­tos estru­tu­rais da arqui­tec­tu­ra, da escul­tu­ra, da pin­tu­ra, da foto­gra­fia, da músi­ca, da lite­ra­tu­ra (influên­cia prin­ci­pal de vári­os cine­as­tas naci­o­nais, não só JCM, mas tam­bém Mano­el de Oli­vei­ra ou, nou­tra medi­da, Fer­nan­do Lopes) ou do tea­tro, e por vezes de modo não mera­men­te expo­si­ti­vo, che­gan­do o emprés­ti­mo de téc­ni­cas pecu­li­a­res a essas artes a apre­sen­tar-se como uma figu­ra de esti­lo cine­ma­to­grá­fi­ca (por exem­plo, quem não repa­rou na orga­ni­za­ção for­mal de Mag­no­lia, para uns uma sin­fo­nia, para outros uma cate­dral?), rela­ti­vi­zan­do aqui­lo que se pode­rá con­si­de­rar ser o cine­ma; segun­do, se as dife­ren­tes artes são ape­nas dife­ren­tes modos de expres­são de sig­ni­fi­ca­dos comuns (e aque­la aber­tu­ra é pro­va dis­so), o que impor­ta­rá ver­da­dei­ra­men­te não será a manu­ten­ção de pro­ces­sos está­ti­cos – a arte espon­ta cons­tan­te­men­te duma evo­lu­ção con­tí­nua, como que num per­pé­tuo des­per­tar, sen­do os cha­ma­dos «puris­tas» menos guar­diões da vir­tu­de de uma arte do que de uma for­ma de ela­bo­ra­ção da mes­ma -, mas a efi­cá­cia da obra em con­se­guir um efei­to catár­ti­co no espec­ta­dor, o que a obri­ga a um reno­va­do desa­fi­ar dos seus pró­pri­os limi­tes; ter­cei­ro, estes fil­mes em par­ti­cu­lar, mes­mo que assu­mi­da­men­te neguem o cine­ma, põe-se na sua alça­da, pois só são com­pre­en­sí­veis em refe­rên­cia a ele, na medi­da em que ape­nas atin­gem o seu poten­ci­al de sig­ni­fi­ca­ção quan­do exi­bi­dos nas mes­mas con­di­ções em que o cine­ma é exibido.

O que frus­ta­rá des­de logo as pre­ten­sões das esta­ções de rádio que ten­ci­o­na­vam emi­tir a tri­lha sono­ra do fil­me por­tu­guês: isso assas­si­na­ria por com­ple­to o seu efei­to pos­sí­vel sobre o espec­ta­dor de cine­ma aten­to, resgatando‑o da pas­si­vi­da­de em que se encon­tra quan­do sen­ta­do na sala de cinema.

▶ João César Monteiro, Branca de Neve  2000  - Filme Completo - YouTubeÉ pre­ci­sa­men­te esta con­di­ção de espec­ta­dor que o fil­me, em si mes­mo con­si­de­ra­do, ques­ti­o­na. Des­de o iní­cio pro­ce­den­do à iden­ti­fi­ca­ção daque­le com a obra («a par­tir des­te momen­to, o espec­ta­dor é, ele pró­prio, espec­tá­cu­lo», pro­cla­ma o autor numa epís­to­la ini­ci­al), JCM extra­po­la a lei­tu­ra psi­ca­na­lí­ti­ca que Robert Wal­ser faz do con­to infan­til – a evi­den­ci­ar a rela­ção entre as figu­ras da Rai­nha e de mãe, da Bran­ca de Neve e de filha, do Caça­dor e de pai, do Prín­ci­pe e de aman­te da filha – para outro pla­no, o do fil­me enquan­to expe­ri­ên­cia esté­ti­ca, reno­van­do a metá­fo­ra pela sobre­po­si­ção e entre­cru­za­men­to des­sas duas dimensões.

Assim, o espec­ta­dor trans­for­ma-se em Bran­ca de Neve, sedu­zi­da pela pro­tec­ção do Caçador/autor/pai, que, por sua vez, vive segun­do o arbí­trio da Rainha/obra/mãe. Esta, entre­tan­to, man­tém uma rela­ção de amor/ódio com a filha, asse­di­a­da por um Prín­ci­pe que, ao mes­mo tem­po, não se enver­go­nha de lhe decla­rar o seu dese­jo pela mãe.

Será o sota­que des­te últi­mo uma crí­ti­ca ao assé­dio cul­tu­ral que o Bra­sil tem vin­do a exer­cer sobre Por­tu­gal? O que impor­ta é que este é um fil­me de refle­xão: o ciné­fi­lo encon­tra no seu negro como que um momen­to de des­can­so e de refle­xão que o leva a per­ce­ber a ses­são de cine­ma como um parên­te­ses den­tro da vida, uma sus­pen­são da rea­li­da­de – um des­can­so para a visão, como uma tela pre­ta que nos pro­te­ge da cla­ri­da­de dolo­ro­sa do exterior…

JCM cha­ma-nos a aten­ção para a fal­si­da­de des­se esta­do de sus­pen­são, aler­tan­do-nos ime­di­a­ta­men­te para a imi­nên­cia de um fim. A ilu­são é‑nos des­te modo nega­da: Bran­ca de Neve é um parên­te­se den­tro daque­le outro parên­te­se, um momen­to de luci­dez, tal­vez até desi­lu­são, pela impos­si­bi­li­da­de de man­ter um mun­do fora do espa­ço real em que os cor­pos se movi­men­tam — daí a inser­ção de ima­gens aquan­do da tro­ca de diá­lo­gos ou entra­das e saí­das de per­so­na­gens. E um «não» sur­do ter­mi­na essa ilu­são que nega sê-lo, um fil­me con­tra­di­tó­rio, um pen­sa­men­to ter­rí­vel que­bra­do pela ter­rí­vel evi­dên­cia do que lhe é exter­no e o ame­a­ça por existir.

▶ João César Monteiro, Branca de Neve  2000  - Filme Completo - YouTube (3)Bran­ca de Neve cons­ti­tui, por­tan­to, um desa­fio para o espec­ta­dor, sacri­fi­can­do, tal como todos os fil­mes con­cei­tu­ais ou expe­ri­men­tais, a lin­gua­gem cine­ma­to­grá­fi­ca a uma ideia, pre­fe­rin­do a sin­ce­ri­da­de (de uma men­ti­ra?) à flui­dez na expo­si­ção. Isso não faz dele neces­sa­ri­a­men­te mau nem bom. No entan­to, ele ganha um valor pró­prio, pois, com a sua arro­gân­cia esplên­di­da, e inde­pen­den­te­men­te de outras razões, ele assu­me-se como a pri­mei­ra gran­de inter­ro­ga­ção de uma geo­gra­fia cine­ma­to­grá­fi­ca que tei­ma­va em ser afir­ma­ti­va des­de o seu renas­ci­men­to nos finais da déca­da de 60.

Lou­ve-se então JCM, o esplên­di­do Nos­fe­ra­tu do cine­ma por­tu­guês, o últi­mo dos gran­des demó­ni­os do nos­so tempo.

Jor­ge Vaz Nande